terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Amuleto

Era um minuto de apertar a campainha de uma hora de apanhar os filhos na casa da ex-mulher de uma manhã de sol de um dia de descanso de uma semana da morte escolhida da mulher que ele amava de um mês de fim de ano. Uma mão abriu a porta de um braço que tremeu de leve de um peito e de uns ombros contraídos de uma coluna que insistia em ficar incorreta de um corpo que já tinha sido dele.  Os olhos castanhos escuro perguntaram se ele queria mesmo levá-los já que os meninos queriam ficar e estavam inquietos e ela, dona dos meninos e dos olhos, estava cansada de tanto ele estar sempre atrasado e os filhos afinal a preferiam e a amavam muito mais e era obvio que eles eram dela, sempre tinham sido porque ele nunca, nunca quis ter filhos e não a tinha abraçado e chorado com ela naquele dia que era pra ter sido lindo que todas amigas e todos os programas de televisão e filmes de cinema insistem que deve ser lindo, o dia quando ela contou pra ele/ o dia que eles nasceram/ o dia que eles andaram/ o dia que eles foram para escola pela primeira vez e começaram a partir dali a não serem mais dela, e nem ele foi mais dela a partir dali porque foi nesse dia que ele foi embora de casa.

- Oi. Tudo bem? Quer entrar pra tomar um suco, uma água? As crianças já tão prontas esperando no sofá.

Então vieram as crianças que já tinham sido esperma que já tinham sido aquela barriga gigante que estica muito mais do que quando é um filho só e poderiam ter sido um filho só mas tinham sido dois e dois tinham dado muito trabalho e a barriga nunca tinha voltado a ser a mesma e tinha faltado dinheiro também e ela e sua barriga podiam ter tido um trabalho melhor se tivessem feito faculdade ou pelo menos feito mais exercício para ficar gostosa e agora ele tinha que dar essa pensão cara e os tênis, os i-pods e as mochilas dos filhos pararam em frente a ele que começou a chorar.  Os tênis, i-pods e mochilas irritados, constrangidos, aliviados, confusos, nem ai pra nada, magoados, abandonados, voltaram para os quartos dos meninos.  Estavam felizes também afinal porque tinham ganhado aquelas crianças de natal e aniversario e de nota boa na escola e de dia das crianças e de dia que ele tinha se esquecido de apanhá-las no colégio e acharam melhor não dizer nada e se comportar.

- O que houve?
- Não posso levá-las Raquel, vim aqui te dizer isso.
- Aconteceu alguma coisa?
- Ela se matou.

E os olhos mandaram para ele falar baixo que os filhos não precisavam saber que aquela vagabunda, maluca com quem ele vivia ainda por cima era suicida e ele nunca choraria assim se fosse por ela, não tinha chorado nem quando os filhos nasceram ou quando ela deu a notícia linda e quer saber? Bem feito porque ele nunca deu atenção pra ela, nem pros filhos e não merece ser feliz com ninguém com ninguém e ficou muito feliz. Não! Não tão feliz porque ela ainda o amava tanto ai pediu a Deus, sei lá o que quer que existisse, anjo, Buda que protegesse esse infeliz que ela ainda ama com cada poro pêlo barba nariz saliva, mas que ele mereceu, mereceu.

- Nossa... Você deve estar arrasado, se eu puder ajudar em algo...

E então, ele sentiu-se aliviado por estar vestindo uma calça, uma blusa de manga comprida, e seus óculos porque pelo menos uma parte dele não tinha ficado exposta ali, durante aqueles minutos que permaneceu parado diante deles naquela casa chorando que nem criança que ele queria tanto voltar a ser naquele momento só para poder recomeçar aquela vida merda.  Voltou para o taxi, para as malas e para a passagem de avião pros Estados Unidos que ele tava apertando no bolso desde que apertou aquela campainha tendo que contar pra eles que nunca mais os veria agora que os tinha realmente visto pela primeira vez.