sábado, 23 de março de 2013

O amor, a tempestade e o vento

Cantando a cantiga mais antiga já ouvida, o vento chamava todos naquele inicio de noite. Queria aqueles do lado de dentro dançando do lado de fora, na chuva, livres da mesmice daquela prisão branca.

Um homem de 30 anos já menino há alguns meses reconheceu a música assim que a ouviu. Viu a si mesmo embalado no colo da avó comendo pipoca doce com leite condensado. Perdido, ora se inclinava da cadeira no ímpeto de voar da janela e se misturar ao vento. Ora tinha a certeza de que o prédio iria desabar a qualquer momento e pensava que talvez melhor fosse chamar a enfermeira o quanto antes.

Verdade que já tantas vezes imaginara o fim. O que aconteceria se uma onda gigante engolisse o hospital? Será que terminaria a vida estirado no chão sem poder correr? Alguns dias imaginava que se fosse capaz de se antecipar chamando logo a enfermeira seria salvo, e talvez, cadeira de rodas e a doença pudessem desaparecer do mesmo modo que tinha aparecido e ele se fazer homem novamente. Responsável por si, por sua vida.

No meio dessa tempestade já cansada de tanto ventar e chover, ela entrou no quarto trazida pela enfermeira. Linda e ainda jovem ela o via pela primeira vez depois de 12 anos. Sem rodeios, sem medo, o encarou por algum tempo.

A visita sustentou o olhar o quanto pôde ate desabar num choro profundo, doído, um choro de toda a chuva do lado de fora e mais uns tantos litros. Não escondeu o rosto, não pediu perdão ou disse “Vai ficar tudo bem”. Apenas puxou a cadeira sentando-se ao seu lado. Cadeira colada com cadeira colada como nos tempos da escola.

Por um momento, por uma questão de ritmo, ele tentou respirar junto com a respiração dela, buscando conduzi-la ao ritmo da cantiga, daquela cantiga do vento. Ela em silêncio por não conseguir dizer nada, ele em silêncio em respeito ao ritmo, os dois numa conversa de alma e de memórias.

Um dueto. Ele a lembrar dos cabelos rebeldes, das bolinhas de papel, dos papeis de carta. Ela a lembrar das mãos dadas, do segredo, do beijo escondido atrás da pilastra numa nostalgia asfixiante a embriagá-los. Ela com a vida pela frente, ele, da mesma idade, tão doente.

De repente, ela mudou o ritmo, e a respiração tornou-se ofegante, intensa, as lágrimas já tendo todas corrido o que tinham que correr. Inclinou-se em sua cadeira e lhe deu um beijo. O “beijo de adulto” que nunca haviam dado, o beijo que tinha se perdido na adolescência tendo os dois seguido rumos tão diferentes mesmo estando na mesma escola, na mesma turma.

Ele não a interrompeu. Saliva, língua, lábios... Esses lábios grossos dela. O beijo um tanto emocionado. A cabeça dele girando. E disse a moça olhando para além dele “Eu te amo”. Mesmo não amando, e sabendo que ele sabia disso. Mesmo sabendo que ele não a amava também e que claro não havia nada, história ou tempo para construí-la. Mas disse. Disse porque precisava dizer, porque a menina nela - aquela que de idade igualava com ele agora naquela cadeira de rodas dependendo de todas as coisas -exigia.

Disse porque as palavras estavam nela, voando dentro dela, prontas para serem ditas. Palavras que ela menina nunca conseguira dizer. Como se ela pudesse fazer o tempo torcer, um tempo circular, onde aquele amor de criança de 9 anos pudesse ser expresso da mesma forma e com a mesma intensidade que naquela época.

Aquilo tudo tão inesperado - mesmo para o vento e para a chuva acostumados com essas coisas – interrompeu a tempestade. Vento e chuva pararam e foram espiar do lado de fora o lado de dentro. Ele, tão exausto, tão consumido por si mesmo, por toda a energia que aquele corpo sem esperança demandava dele. Ela na expectativa do que ele poderia achar. Havia sido tão louca afinal.

E foi então que veio o choro dele. Aquele choro que tentara por tantas vezes ludibriar, guardado desde a época em que a doença fora diagnosticada. Um choro que veio de um lugar tão escuro e tão abandonado que não pôde identificar. Veio numa força e intensidade tal, que o desarmou. Raiva, desespero, vazio, a certeza do fim. E depois, a onda gigante. Logo depois. A onda que destruiria e libertaria ao mesmo tempo. A onda que era ela. A primeira e a última.

“Eu também”, respondeu e ficou a contemplá-la. Os dois com aquele amor resgatado, inventado sem saber o que fazer um do outro. Ela novamente tomou a iniciativa e o abraçou. Ele novamente, deixou-se abraçar. E ficaram ali, se amando por aqueles poucos segundos que tiveram ate o momento se desfazer ou então chegar a família dele para a visita.

O homem morreu uns dias depois do encontro, feliz, outro, em paz, cantarolando em voz alta a canção que ecoava ao vivo na sua memória - ela, ele e o vento - cantou até a voz acabar e permanecer em completo silêncio.