Quando Amanda entrou pela porta
da antiga casa 20 anos depois, o mar entrou junto assim que as gêmeas se
viram. Invadiu sala, quarto, cozinha e
em pouco tempo a casa flutuava. A mãe primeiramente
tentou tirar a agua com uns baldes e depois, conversar com Amanda e Lúcia para
que parassem com o que quer que fosse que faziam. Mas não conseguiu. Ou não
tentou o suficiente, uma vez que o mar não era oceano ainda. Que a bicicleta
não estava tão quebrada assim, que o arranhão estava sangrando só um pouquinho.
A primeira vez que Lúcia matou
tinha 7 anos. Era um pé de feijão
gigante que ela mesma plantou, regou e embalou.
“Pra que deixar isso aqui? A pesquisa da escola não acabou? Joga isso fora
menina!” a mãe disse. Na segunda, tinha 16. “Eu sei que você quer. Mas não
temos idade ainda. Agora não.” O namorado disse. E ai foram ela, Amanda e a mãe do namorado na
clínica resolver o problema. Não houve uma terceira vez. Aquilo surgiu alguns
meses depois. Primeiro, como uma coceira
no nariz de Lúcia. Depois, escapando pelos olhos, como no dia em que Amanda e
Eduardo, seu namorado num dia, e ex-namorado no outro, vieram lhe contar que
estavam apaixonados. Isso foi o que
contaram com a boca. Contaram ainda em pensamento da pena que sentiam dela,
coitadinha da gêmea feia. Pessoas bonitas deviam ficar juntas não havia jeito,
enfim.
Depois veio o casamento de Amanda
e Eduardo, algum tempo depois. Eles eram jovens, bonitos, se amavam e Lúcia os
odiava. Preferiu não ir ao
casamento. Nesta época a coceira no
nariz que escapava pelos olhos já era um lago.
A irmã foi morar com o marido em outra cidade, para onde Eduardo foi
transferido quando se formou.
Por isso quando Amanda abriu a
porta e o lago era mar, Lúcia se assustou. Não sabia que ele tinha crescido
assim. Havia se passado 20 anos, mas era como se tivesse sido ontem que ela
saiu pela porta para nunca mais voltar.
E não teria voltado mesmo, se Eduardo não tivesse pedido o divórcio e se
casado com outra mulher, bem mais jovem, que logo engravidou do filho que ele
implorou para Amanda, mas ela nunca quis ter.
Amanda ainda era tão bonita. E
talvez quisesse ter resistido ao mar. Talvez tivesse dito outra coisa naquele
dia em que conversaram pela ultima vez, naquele dia em que ela roubou Eduardo.
Mas não havia registro na memória de Lúcia. Nem som de voz para fazer as
palavras serem compreendidas embaixo d’agua quando Amanda tentava – e ela
tentava - se fazer compreender. Lúcia bem que quis sentir pena, ou qualquer
coisa. Mas Amanda era uma vaca, uma vadia, como se diz na televisão.
Na vida de Lúcia nada mudou. Na
de Amanda novos namorados vieram e se foram depois de Eduardo. Amanda começou e
terminou uma faculdade e depois conseguiu bons trabalhos, conheceu pessoas, e
por diversas vezes ameaçou ir embora da casa, tão cansada desse silêncio de uma
casa que existe dentro do oceano. Mas nunca foi.
Mãe e gêmeas ainda conviveram
juntas por 10 anos. O tempo necessário para a mãe ver o mar virar oceano. No dia
do enterro da mãe, Lúcia tirou uma foto dela no caixão. Uma foto da face pálida
e sem vida dela. Capturar sua morte era como mantê-la viva. Lúcia sabia disso.
Amanda não. A foto ficou na sala da casa ainda por mais 10 anos. Amanda tinha medo da foto. Como ter medo de
alguém que as gerou? A mãe do porta-retratos era a mãe que Lúcia sempre quis
ter.
E então, justo na manhã em que as
duas completam 62 anos de vida, e a mãe 10 anos de morta, ele cai no chão.
Justo na manhã que era para ser a mesma manhã de todos os dias, o
porta-retratos se racha sem barulho em uma queda no fundo do oceano. Numa queda
que nunca poderia ter rachado um porta-retratos, e mais ainda, uma foto. Mas Lúcia agora é órfã. É preciso encarar a verdade. É órfã do pai que morreu quando ela muito
pequena, e da mãe por causa de uma queda de porta-retratos.
Amanda flutua em sua direção.
Nada viu. Não sabia que a mãe ainda cuidava de Lúcia, e se soubesse poderia
sentir ciúmes. Na verdade, Amanda não
precisava mais da mãe. Da mesma forma que Lúcia não precisa mais do
oceano. Não há mais espaço na casa para
ele crescer. O oceano vai explodir. Vai explodir e Lúcia grita. Amanda vê o grito
sem som e segura na mão de Lúcia. O
oceano escorre pelos olhos de Lúcia com uma força que não dá para
controlar. Escorre por algumas horas até
a casa ficar completamente seca como esta agora.
As irmãs percebem o som voltar a
casa. Depois de tanto tempo, escutam o
barulho dos ossos estalando no abraço que nunca mais tinham dado. Amanda escuta a voz de Lúcia ecoando primeiro
baixinho em um sussurro até aumentar de volume e virar um grito. Dessa vez o
grito podia ser ouvido até da rua.
Muitos outros gritos. Ouvir Lúcia é como
ouvir outra pessoa. Amanda tem sua
última e primeira chance de falar com essa estranha. De dizer pra ela que sente
muito. Que sente tanto. Tem a chance de falar para ela dos filhos que não pôde
ter pela saudade de um sobrinho que nunca conheceu.