quarta-feira, 19 de junho de 2013

Perecível

Acordo assustado me sentindo estranho.  Percebo em desespero que meu corpo mudou de estado.  Sou líquido.  Ameaço escorrer, penetrar na cama e quase me desperdiço, mas por algum milagre consigo me conter entre as dobras do lençol e sua a trama, menos espessa que eu mesmo agora.  Preciso de ajuda. Minha esposa Marta dorme como sempre, sólida em seu sono pesado. Penso em acordá-la, em pedir-lhe que me coloque em um saco plástico, em um pote, balde, qualquer coisa, mas me faltam braços, ou qualquer membro para tocá-la. 

Minha gata Shakira então resolve pular na cama e dá um longo gole no meu corpo sem que eu consiga fazer qualquer coisa.  O que resta de mim lembra-se da voz, da voz que talvez exista ainda mesmo neste estado.  E grito.  Acordo com Marta me consolando “Foi só um pesadelo, calma, calma” mas sua voz vem de lugar nenhum.   Marta não esta ali.  Agora pelo menos estou em estado sólido e corro pela casa procurando pela voz que eu acabei de ouvir.  A voz ainda ecoa na casa, mas eu não a encontro. Marta sumiu e Shakira também. 

Percebo que não tenho braços, lembro-me do gole da gata e desço as escadas correndo esbaforido.  Quase esbarro no porteiro e pergunto somente por Marta.  

“Seu Mário, o senhor é solteiro...” - responde espantado.

“Não entendo...  E onde estão meus braços, o senhor os viu?”.

O homem responde que acha que sim:  “Veja se não são braços nesse pacote que foi entregue ontem de manhã. Provavelmente alguma compra que o senhor fez pela internet”.

Peço ajuda para o porteiro, que encaixa rapidamente os novos braços.  E me diz: “Vou precisar amputar suas pernas, tudo bem? Estou precisando delas”.

“Não, não. O senhor não pode fazer isso.... Eu preciso muito mais delas que você.  Cadê as suas por sinal?”

“Dá as pernas para o homem” responde Marta com um serrote já iniciando o procedimento de retirada da primeira. 

“Não! Não! Para, para, devolve minha perna... Me deixa em paz!”.  Começo a espancá-la até minha raiva passar.

Logo lembro que Marta não existe e o porteiro me diz:
“ Ei! Fui eu que disse isso! Eu mudei de voz, de cara, de corpo, só pela delicia de te ver louco.  Você ta acordado?”

Marta me sacode: “Querido você estava falando sozinho. O que aconteceu?”. 

“Foi só um sonho, respondo”. 

“Amor, cadê suas pernas?” - Marta grita.

“Eu não sei! Cadê minhas pernas?” E começo a chorar compulsivamente em completo desespero. “Eu achei que era um sonho...”

“Calma, não é para tanto também.  Vou pegar aquelas antigas da Tia Rose mesmo.   Ela não ta usando, mas depois vamos naquela loja de promoções comprar uma nova, ta bom? Amanha de manha, que tal? Acho que talvez seja bem o tempo de mudar mesmo para uma versão mais atualizada.”

Concordo com tudo aquilo com a cabeça somente, enquanto ela encaixa em mim as pernas da Tia Rose que são bem mais roliças que as minhas. Fica um pouco estranho, mas eu acabo achando melhor do que não ter qualquer perna. 

Sem conseguir dormir o resto da noite, resolvo vagar pela cidade.  Na frente do meu prédio sou atacado por lobos.  Eles deixam meu corpo intacto mas dilaceram e estraçalham minha cabeça.  Com ajuda dos vizinhos consigo matar todos.  Encaixo em mim a cabeça de um dos lobos.

Ao andar pelas ruas na madrugada, vejo as mesmas figuras de sempre.  Mendigos, prostitutas, a juventude voltando da noitada e observo em seus olhos que eu não sou mais eu. Ou ainda sou? Na verdade, ninguém parece se importar muito com isso.  As pessoas continuam em seu ritmo, cuidado de sua vida. Estranhamente, uma versão camuflada de mim que é incapaz de chocar aos outros com minha aparência bizarra me soa inútil.  Me sinto frágil, desamparado, perecível. 

Sinto um vazio e uma fome incontrolável toma conta de mim.  Ando até uma padaria sendo construída naquela noite e ainda inacabada.  O padeiro, um homem estranho, de cabelos levemente alaranjados e roupa branca me diz:

“O sonho acabou.”

“O doce? Ou o sonho, de sonhar?

“O outro.  O doce ainda tem.  Vai querer quantos?”

“Dois”. – Respondo. “E o outro sonho, ta em falta? A humanidade vai parar de sonhar? Como vamos ficar?”

 “Ninguém vai ficar sem sonhar.  Por HOJE, o SEU sonho acabou.”

Acordo.  São oito e meia da manhã! Não tive insônia afinal e estou super atrasado! Dou-me conta de que o despertador do celular não tocou de novo.  O espelho me mostra que sou o mesmo de sempre. “Talvez alguns anos mais velho. Várias rugas, pernas que doem...”. O espelho me mostra que não sou o mesmo.

2 comentários:

  1. Já leu Metamorfose, do Kafka? :-)

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    1. hahahahah essa foi uma proposta louca do nosso prof. Era para dar uma viajada mesmo. O tema era insonia...

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