Acordo assustado me sentindo estranho. Percebo em desespero que meu corpo mudou de
estado. Sou líquido. Ameaço escorrer, penetrar na cama e quase me
desperdiço, mas por algum milagre consigo me conter entre as dobras do lençol e
sua a trama, menos espessa que eu mesmo agora. Preciso de ajuda. Minha esposa Marta dorme
como sempre, sólida em seu sono pesado. Penso em acordá-la, em pedir-lhe que me
coloque em um saco plástico, em um pote, balde, qualquer coisa, mas me faltam
braços, ou qualquer membro para tocá-la.
Minha gata Shakira então resolve
pular na cama e dá um longo gole no meu corpo sem que eu consiga fazer qualquer
coisa. O que resta de mim lembra-se da
voz, da voz que talvez exista ainda mesmo neste estado. E grito.
Acordo com Marta me consolando “Foi só um pesadelo, calma, calma” mas sua
voz vem de lugar nenhum. Marta não esta
ali. Agora pelo menos estou em estado
sólido e corro pela casa procurando pela voz que eu acabei de ouvir. A voz ainda ecoa na casa, mas eu não a encontro.
Marta sumiu e Shakira também.
Percebo que não tenho braços,
lembro-me do gole da gata e desço as escadas correndo esbaforido. Quase esbarro no porteiro e pergunto somente
por Marta.
“Seu Mário, o senhor é solteiro...”
- responde espantado.
“Não entendo... E onde estão meus braços, o senhor os viu?”.
O homem responde que acha que sim: “Veja se não são braços nesse pacote que foi
entregue ontem de manhã. Provavelmente alguma compra que o senhor fez pela
internet”.
Peço ajuda para o porteiro, que
encaixa rapidamente os novos braços. E me diz: “Vou precisar amputar
suas pernas, tudo bem? Estou precisando delas”.
“Não, não. O senhor não pode fazer isso.... Eu
preciso muito mais delas que você. Cadê
as suas por sinal?”
“Dá as pernas para o homem” responde Marta com
um serrote já iniciando o procedimento de retirada da primeira.
“Não! Não! Para, para, devolve
minha perna... Me deixa em paz!”. Começo
a espancá-la até minha raiva passar.
Logo lembro que Marta não existe
e o porteiro me diz:
“ Ei! Fui eu que disse isso! Eu
mudei de voz, de cara, de corpo, só pela delicia de te ver louco. Você ta acordado?”
Marta me sacode: “Querido você estava falando
sozinho. O que aconteceu?”.
“Foi só um sonho, respondo”.
“Amor, cadê suas pernas?” - Marta
grita.
“Eu não sei! Cadê minhas pernas?”
E começo a chorar compulsivamente em completo desespero. “Eu achei que era um
sonho...”
“Calma, não é para tanto
também. Vou pegar aquelas antigas da Tia
Rose mesmo. Ela não ta usando, mas
depois vamos naquela loja de promoções comprar uma nova, ta bom? Amanha de
manha, que tal? Acho que talvez seja bem o tempo de mudar mesmo para uma versão
mais atualizada.”
Concordo com tudo aquilo com a
cabeça somente, enquanto ela encaixa em mim as pernas da Tia Rose que são bem
mais roliças que as minhas. Fica um pouco estranho, mas eu acabo achando melhor
do que não ter qualquer perna.
Sem conseguir dormir o resto da
noite, resolvo vagar pela cidade. Na
frente do meu prédio sou atacado por lobos.
Eles deixam meu corpo intacto mas dilaceram e estraçalham minha cabeça. Com ajuda dos vizinhos consigo matar todos. Encaixo em mim a cabeça de um dos lobos.
Ao andar pelas ruas na madrugada,
vejo as mesmas figuras de sempre.
Mendigos, prostitutas, a juventude voltando da noitada e observo em seus
olhos que eu não sou mais eu. Ou ainda sou? Na verdade, ninguém parece se
importar muito com isso. As pessoas continuam
em seu ritmo, cuidado de sua vida. Estranhamente, uma versão camuflada de mim
que é incapaz de chocar aos outros com minha aparência bizarra me soa
inútil. Me sinto frágil, desamparado,
perecível.
Sinto um vazio e uma fome
incontrolável toma conta de mim. Ando
até uma padaria sendo construída naquela noite e ainda inacabada. O padeiro, um homem estranho, de cabelos
levemente alaranjados e roupa branca me diz:
“O sonho acabou.”
“O doce? Ou o sonho, de sonhar?
“O outro. O doce ainda tem. Vai querer quantos?”
“Dois”. – Respondo. “E o outro
sonho, ta em falta? A humanidade vai parar de sonhar? Como vamos ficar?”
“Ninguém vai ficar sem sonhar. Por HOJE, o SEU sonho acabou.”
Acordo. São oito e meia da manhã! Não tive insônia
afinal e estou super atrasado! Dou-me conta de que o despertador do celular não
tocou de novo. O espelho me mostra que
sou o mesmo de sempre. “Talvez alguns anos mais velho. Várias rugas, pernas que
doem...”. O espelho me mostra que não sou o mesmo.
Já leu Metamorfose, do Kafka? :-)
ResponderExcluirhahahahah essa foi uma proposta louca do nosso prof. Era para dar uma viajada mesmo. O tema era insonia...
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