Do jardim fértil, novas vidas eram geradas, vidas que brotavam para trazer novas vidas a rodeá-lo. No mesmo gramado, bebês engatinhavam onde mais tarde caminhariam de braços enlaçados, e então, trariam seus bebês para engatinhar, os mesmos que acompanhariam seus pais algum dia nos passeios matinais, num ciclo sem fim.
Helena não era parte de nenhuma daquelas histórias. Há 20 anos observava o jardim. Acompanhava as histórias em pedaços contadas ali para depois embrenhar-se em cada uma delas, imaginando suas continuações. Contava e recontava para si mesma a vida daquelas pessoas, como se estivesse vivendo a sua própria.
Única filha entre 4 irmãos, Helena
cuidara da mãe durante aqueles 20 anos todos os dias, todas as horas e todos os
minutos tirando os em que descia para o jardim. A doença a cada dia roubava um
pouquinho da memória da mãe, de modo que pouco a pouco filha virava mãe que
virava um corpo oco. As duas cada dia
mais ocas: a mãe que perdia a memória e a filha não construía nenhuma,
solidária. Sua função única era
acompanhar a mãe desaparecer, cada dia mais, até virar um fantasma a vagar pela
casa assombrada. Assombrada um pouco por
medo da morte, mas principalmente por medo da vida.
Naquele domingo inédito, Helena
não seria plateia no palco-jardim. Só precisava de um banco e uma árvore para
esconder seu rosto na sombra. A mulher
chorava compulsivamente. Revivia na
memória a mesma cena diversas e diversas vezes: o corpo de sua mãe sendo sugado
para dentro da terra em um jardim ao revés.
Iam embora com ela os dias de
chuva que ensolaravam-se em segundos quando de repente a mãe contava, depois de
dias e dias em silêncio, do vestido que Helena usara no primeiro dia de aula. Iam
embora com ela as noites que varou, os gritos que abafou para não acordar os
vizinhos, cada vitória sobre a doença e cada derrota. Iam embora com ela suas histórias, seus
sonhos, suas broncas, suas lágrimas.
Começou a sentir a saudade
entalada em sua garganta subindo, virando angústia, pânico, falta de ar, e uma
ânsia incontrolável a fez vomitar. Ninguém
teria visto a cena se não fosse por um homem que a observava de longe há alguns
minutos. João se levantou, andou ate ela
e lhe ofereceu um lenço e um sorriso.
A história de João estava ligada
a cada flor, borboleta e árvore do jardim. Conhecera a esposa na
infância. Brincaram ali, ele, Vera e os
amigos, de pique-esconde. Vera era a
sempre a primeira a ser encontrada, mas João não a deixava perder. Ficava no pique em seu lugar, de olhos
fechados contando, enquanto as crianças se escondiam novamente.
Os dois começaram a namorar muito
jovens, e ficaram noivos por longos anos até terem condição de se
responsabilizarem por suas próprias vidas.
O casamento foi festejado no jardim, logo depois da cerimônia na igreja
próxima. Não demorou até nascerem os meninos, que
cresceram saudáveis e felizes, tão rápido como João ou Vera jamais teriam previsto.
Nos últimos anos viviam juntos
apenas os três na mesma casa de tantos anos.
João, Vera e o raro tipo de amor que os unia, lapidado a cada dia pela
erosão do tempo. Quando a escultura finalmente
ficou pronta, o tempo julgou ser hora de levar um deles, e escolheu Vera. Dali em diante, João parou de viver por meses,
até aquele domingo.
O domingo em que ele e Helena se viram
pela primeira, e pela última vez. Conversaram
por muitas horas até a noite cair. E inspirados
pela luz das estrelas vinda de longe para desenhar, no momento exato, um céu
planejado há milhares de anos, convidaram-se para dançar. E embora nenhum dos dois tivesse dançado
antes em um jardim observados pelo céu estrelado, souberam exatamente o que
fazer naquela noite. E em todas as
outras subsequentes.
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