quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A casa, o porta-retratos e o oceano

Quando Amanda entrou pela porta da antiga casa 20 anos depois, o mar entrou junto assim que as gêmeas se viram.  Invadiu sala, quarto, cozinha e em pouco tempo a casa flutuava.  A mãe primeiramente tentou tirar a agua com uns baldes e depois, conversar com Amanda e Lúcia para que parassem com o que quer que fosse que faziam. Mas não conseguiu. Ou não tentou o suficiente, uma vez que o mar não era oceano ainda. Que a bicicleta não estava tão quebrada assim, que o arranhão estava sangrando só um pouquinho.

A primeira vez que Lúcia matou tinha 7 anos.  Era um pé de feijão gigante que ela mesma plantou, regou e embalou.  “Pra que deixar isso aqui? A pesquisa da escola não acabou? Joga isso fora menina!” a mãe disse. Na segunda, tinha 16. “Eu sei que você quer. Mas não temos idade ainda. Agora não.” O namorado disse.  E ai foram ela, Amanda e a mãe do namorado na clínica resolver o problema. Não houve uma terceira vez. Aquilo surgiu alguns meses depois.  Primeiro, como uma coceira no nariz de Lúcia. Depois, escapando pelos olhos, como no dia em que Amanda e Eduardo, seu namorado num dia, e ex-namorado no outro, vieram lhe contar que estavam apaixonados.  Isso foi o que contaram com a boca. Contaram ainda em pensamento da pena que sentiam dela, coitadinha da gêmea feia. Pessoas bonitas deviam ficar juntas não havia jeito, enfim.

Depois veio o casamento de Amanda e Eduardo, algum tempo depois. Eles eram jovens, bonitos, se amavam e Lúcia os odiava.  Preferiu não ir ao casamento.  Nesta época a coceira no nariz que escapava pelos olhos já era um lago.  A irmã foi morar com o marido em outra cidade, para onde Eduardo foi transferido quando se formou.

Por isso quando Amanda abriu a porta e o lago era mar, Lúcia se assustou. Não sabia que ele tinha crescido assim. Havia se passado 20 anos, mas era como se tivesse sido ontem que ela saiu pela porta para nunca mais voltar.  E não teria voltado mesmo, se Eduardo não tivesse pedido o divórcio e se casado com outra mulher, bem mais jovem, que logo engravidou do filho que ele implorou para Amanda, mas ela nunca quis ter.

Amanda ainda era tão bonita. E talvez quisesse ter resistido ao mar. Talvez tivesse dito outra coisa naquele dia em que conversaram pela ultima vez, naquele dia em que ela roubou Eduardo. Mas não havia registro na memória de Lúcia. Nem som de voz para fazer as palavras serem compreendidas embaixo d’agua quando Amanda tentava – e ela tentava - se fazer compreender. Lúcia bem que quis sentir pena, ou qualquer coisa. Mas Amanda era uma vaca, uma vadia, como se diz na televisão.

Na vida de Lúcia nada mudou. Na de Amanda novos namorados vieram e se foram depois de Eduardo. Amanda começou e terminou uma faculdade e depois conseguiu bons trabalhos, conheceu pessoas, e por diversas vezes ameaçou ir embora da casa, tão cansada desse silêncio de uma casa que existe dentro do oceano. Mas nunca foi.

Mãe e gêmeas ainda conviveram juntas por 10 anos. O tempo necessário para a mãe ver o mar virar oceano. No dia do enterro da mãe, Lúcia tirou uma foto dela no caixão. Uma foto da face pálida e sem vida dela. Capturar sua morte era como mantê-la viva. Lúcia sabia disso. Amanda não. A foto ficou na sala da casa ainda por mais 10 anos.  Amanda tinha medo da foto. Como ter medo de alguém que as gerou? A mãe do porta-retratos era a mãe que Lúcia sempre quis ter.

E então, justo na manhã em que as duas completam 62 anos de vida, e a mãe 10 anos de morta, ele cai no chão. Justo na manhã que era para ser a mesma manhã de todos os dias, o porta-retratos se racha sem barulho em uma queda no fundo do oceano. Numa queda que nunca poderia ter rachado um porta-retratos, e mais ainda, uma foto.  Mas Lúcia agora é órfã.  É preciso encarar a verdade.  É órfã do pai que morreu quando ela muito pequena, e da mãe por causa de uma queda de porta-retratos.
 
Amanda flutua em sua direção. Nada viu. Não sabia que a mãe ainda cuidava de Lúcia, e se soubesse poderia sentir ciúmes.  Na verdade, Amanda não precisava mais da mãe. Da mesma forma que Lúcia não precisa mais do oceano.  Não há mais espaço na casa para ele crescer. O oceano vai explodir. Vai explodir e Lúcia grita. Amanda vê o grito sem som e segura na mão de Lúcia.  O oceano escorre pelos olhos de Lúcia com uma força que não dá para controlar.  Escorre por algumas horas até a casa ficar completamente seca como esta agora.  

As irmãs percebem o som voltar a casa.  Depois de tanto tempo, escutam o barulho dos ossos estalando no abraço que nunca mais tinham dado.  Amanda escuta a voz de Lúcia ecoando primeiro baixinho em um sussurro até aumentar de volume e virar um grito. Dessa vez o grito  podia ser ouvido até da rua. Muitos outros gritos.  Ouvir Lúcia é como ouvir outra pessoa.  Amanda tem sua última e primeira chance de falar com essa estranha. De dizer pra ela que sente muito. Que sente tanto. Tem a chance de falar para ela dos filhos que não pôde ter pela saudade de um sobrinho que nunca conheceu.  

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Novos Tempos

A moça entra na loja com a pele totalmente bege. Bege como não se via há muito tempo. A vendedora, numa tranquilidade disfarçada, leva a moça até a salinha de emergência para UVCs - Ultimas Vítimas de Suas Consciências - para conversarem melhor, como explica para a visitante, por ora, indesejada. Os outros clientes da loja, com seus corpos púrpuras, saudáveis e felizes, constrangem-se com a situação embaraçosa e fingem nada ver. A gerente da loja agradece e respira aliviada.

Já na sala apropriada, a vendedora conversa com a UVC:

- Meu Deus o que houve com você? Tá tãããããão inicio de século. Uma cara de doente... Melhor, uma cara de desleixada mesmo. Desculpa a sinceridade.

A moça acena com a cabeça e a vendedora continua:

- Não entendo, por que parar de usar nossos produtos? Você saiu tão bem daqui da última vez, tão púrpura, tão feliz. Pela coloração da sua pele nota-se logo que não usa nada ha pelo menos 2 semanas, estou certa?

- 3 semanas – responde baixinho – mas eu precisava...

- Claro, claro! Entendo, precisava ver para onde o mundo esta indo, com tanta corrupção, impunidade, poluição, desigualdade social, pobreza, bla, bla, bla... Certo? Mas você não precisa mais disso! Com seu nível intelectual, classe social, não tem realmente necessidade de lidar com temas tão fora de moda. Três vivas à modernidade! Repita comigo: Viva, viva, viva...

- Viva, viva, viva... – responde um tanto constrangida. - Olha, chega uma hora que não da mais... Eu queria resistir...

- Ótimo! Vou começar com os produtos de nossa linha permanente: pelo que estou percebendo você esta precisando de alienação, resignação, consciência tranquila, enfim... O nosso kit básico de sobrevivência no mundo moderno. Vou trazer aqui umas amostras, você prova e vemos como fica, ok?

- Ok. Felicidade vocês ainda não vendem não, né?

- Querida, esses sentimentos mais complexos ainda não foram sintetizados em lugar nenhum do mundo. Mas, pode ter certeza, quando forem lançados aqui será o primeiro lugar a vendê-los!

A moça toma todas as amostras, pílulas e pílulas roxas. A vendedora afirma e reafirma como ela esta LINDAAAAAAAAAAAAA realmente vibrante e já ganhando um arroxeado saudável e brilhante. Um certo ar de requinte, aristocrático mesmo. A moça agradece e sente um alívio tão profundo e reconfortante que quase se sente feliz. Agradece a vendedora com um sorriso e se prepara para ir ao caixa pagar, vai saindo, quando a vendedora a chama:

- Márcia!! Falta você conhecer nossa coleção outono-inverno que A-CA-BOU de chegar... Vem, senta um pouco mais, vou trazer um cafezinho, um bolo para te apresentar com calma...

- Estou com um pouco de pressa, do que se trata?

- Então querida, é tecnologia de ponta que estamos trazendo para nossos clientes. Por enquanto, uma exclusividade de nossa loja. Uma nova tendência para executivos como você. Estamos sintetizando: falta de ética e de caráter! Produtos fundamentais para quem quer se manter competitiva e sintonizada com o mercado de trabalho.

- Ah não, brigada, fica pra próxima...

- Mas ta todo mundo levando, corre o risco de você voltar e já ter acabado, hein?

- Olha, eu realmente não duvido...

sexta-feira, 21 de junho de 2013

A volta

“Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu”
TODO O SENTIMENTO – Chico Buarque


“É na soma do seu olhar
Que eu vou me conhecer inteiro
Se eu nasci para enfrentar o mar
Ou faroleiro”
TANTO AMAR – Chico Buarque

Eram três. Os dois mais a roda. A roda gigante girava imponente em seu eixo. Sabia seu rumo, seu destino. Os outros dois, não. João e Sônia entraram na cabine. A partir daquele momento, não tinham mais passado comum. O presente e o futuro seriam desenhados juntos e durariam o tempo da volta da roda.

João saboreou o silêncio tão bem vindo depois de tanto tempo. Sônia pulou na paisagem. João tragou o silêncio, e o misturou no fundo de si, deixou-o ali, ludibriado, como se ele silêncio nunca tivesse deixado de fazer parte dele João. Sônia voava naquele céu azul, era pássaro, era nuvem, era sol. Sônia era paisagem.

Sônia-paisagem de longe observava João, um feixe de luz que aumentava cada vez mais de tamanho e intensidade, até cobrir todo o espaço ao seu redor. Exatamente como João sempre fazia. João-silêncio olhava para dentro da Sônia habitante de sua memória, sua Sônia, de quem amava as sardas e vendavais. Sônia se aproximou da roda num voo rasante e pegou pedaço desse tecido para plantar João em si. João puxou Sônia-vento para dançar.

Enquanto a roda subia mais e mais, Sônia-paisagem voava fértil e João-silêncio via o amor que teciam povoar o espaço já todo tomado pelo silêncio. Dentro dela, crescia um farol. Dentro dele, amor e silêncio dançavam.

A roda já ia quase atingindo o topo quando Sônia-paisagem virou Sônia, e João-silêncio era João. Olharam-se e souberam-se encantados, hipnotizados pela beleza do redondo, dentro do redondo, do redondo, do redondo. E agora estavam no topo da roda, no topo céu, do mundo, do universo, circulares. Tão pequenos e tão únicos naquele segundo perfeito. Aquele era o momento de tudo convergir para que tudo desse certo. E movidos por uma certeza-fábula, fizeram o que acreditavam que deveriam e aguardaram.

O sol e a roda agora lentamente começavam a cair. Uma névoa aos poucos descia do céu e inexorável perfurava Sônia e João em seus caminhos. Arriscaram um beijo antes que fosse tarde demais, e embora até tenham tentado permanecer Sônia e João pelo tempo em que o beijo durou, não conseguiram. E de volta a paisagem, agora já escura e fragmentada, a moça não era mais capaz de ver João. João e seu silêncio haviam perdido Sônia no labirinto de si.

A gravidade puxava a roda que por sua vez puxava as lágrimas sincronizadas que não paravam de correr nos olhos que se viam sem se ver. As palavras não eram permitidas depois de tanto estrago, e nem seriam perfeitas o suficiente para comunicar e participar daquela conversa de ombros. Ombros que naturalmente convidaram braços e peitos para um abraço. Ao casal, só restava ir embora da roda que já tinha parado há algum tempo de girar aguardando que os dois saíssem e dessem lugar a novos outros casais a se aventurarem em seu giro. E então, saíram João e Sônia de mãos dadas, sem nada mais a fazer a não ser partirem, cada par de mãos para seu lado.

João e Sônia.
João, Sônia.
João. Sônia.
Vento e Farol.
Vento-Farol
VentoFarol

Regeriam silêncios e tempestades para sempre.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Perecível

Acordo assustado me sentindo estranho.  Percebo em desespero que meu corpo mudou de estado.  Sou líquido.  Ameaço escorrer, penetrar na cama e quase me desperdiço, mas por algum milagre consigo me conter entre as dobras do lençol e sua a trama, menos espessa que eu mesmo agora.  Preciso de ajuda. Minha esposa Marta dorme como sempre, sólida em seu sono pesado. Penso em acordá-la, em pedir-lhe que me coloque em um saco plástico, em um pote, balde, qualquer coisa, mas me faltam braços, ou qualquer membro para tocá-la. 

Minha gata Shakira então resolve pular na cama e dá um longo gole no meu corpo sem que eu consiga fazer qualquer coisa.  O que resta de mim lembra-se da voz, da voz que talvez exista ainda mesmo neste estado.  E grito.  Acordo com Marta me consolando “Foi só um pesadelo, calma, calma” mas sua voz vem de lugar nenhum.   Marta não esta ali.  Agora pelo menos estou em estado sólido e corro pela casa procurando pela voz que eu acabei de ouvir.  A voz ainda ecoa na casa, mas eu não a encontro. Marta sumiu e Shakira também. 

Percebo que não tenho braços, lembro-me do gole da gata e desço as escadas correndo esbaforido.  Quase esbarro no porteiro e pergunto somente por Marta.  

“Seu Mário, o senhor é solteiro...” - responde espantado.

“Não entendo...  E onde estão meus braços, o senhor os viu?”.

O homem responde que acha que sim:  “Veja se não são braços nesse pacote que foi entregue ontem de manhã. Provavelmente alguma compra que o senhor fez pela internet”.

Peço ajuda para o porteiro, que encaixa rapidamente os novos braços.  E me diz: “Vou precisar amputar suas pernas, tudo bem? Estou precisando delas”.

“Não, não. O senhor não pode fazer isso.... Eu preciso muito mais delas que você.  Cadê as suas por sinal?”

“Dá as pernas para o homem” responde Marta com um serrote já iniciando o procedimento de retirada da primeira. 

“Não! Não! Para, para, devolve minha perna... Me deixa em paz!”.  Começo a espancá-la até minha raiva passar.

Logo lembro que Marta não existe e o porteiro me diz:
“ Ei! Fui eu que disse isso! Eu mudei de voz, de cara, de corpo, só pela delicia de te ver louco.  Você ta acordado?”

Marta me sacode: “Querido você estava falando sozinho. O que aconteceu?”. 

“Foi só um sonho, respondo”. 

“Amor, cadê suas pernas?” - Marta grita.

“Eu não sei! Cadê minhas pernas?” E começo a chorar compulsivamente em completo desespero. “Eu achei que era um sonho...”

“Calma, não é para tanto também.  Vou pegar aquelas antigas da Tia Rose mesmo.   Ela não ta usando, mas depois vamos naquela loja de promoções comprar uma nova, ta bom? Amanha de manha, que tal? Acho que talvez seja bem o tempo de mudar mesmo para uma versão mais atualizada.”

Concordo com tudo aquilo com a cabeça somente, enquanto ela encaixa em mim as pernas da Tia Rose que são bem mais roliças que as minhas. Fica um pouco estranho, mas eu acabo achando melhor do que não ter qualquer perna. 

Sem conseguir dormir o resto da noite, resolvo vagar pela cidade.  Na frente do meu prédio sou atacado por lobos.  Eles deixam meu corpo intacto mas dilaceram e estraçalham minha cabeça.  Com ajuda dos vizinhos consigo matar todos.  Encaixo em mim a cabeça de um dos lobos.

Ao andar pelas ruas na madrugada, vejo as mesmas figuras de sempre.  Mendigos, prostitutas, a juventude voltando da noitada e observo em seus olhos que eu não sou mais eu. Ou ainda sou? Na verdade, ninguém parece se importar muito com isso.  As pessoas continuam em seu ritmo, cuidado de sua vida. Estranhamente, uma versão camuflada de mim que é incapaz de chocar aos outros com minha aparência bizarra me soa inútil.  Me sinto frágil, desamparado, perecível. 

Sinto um vazio e uma fome incontrolável toma conta de mim.  Ando até uma padaria sendo construída naquela noite e ainda inacabada.  O padeiro, um homem estranho, de cabelos levemente alaranjados e roupa branca me diz:

“O sonho acabou.”

“O doce? Ou o sonho, de sonhar?

“O outro.  O doce ainda tem.  Vai querer quantos?”

“Dois”. – Respondo. “E o outro sonho, ta em falta? A humanidade vai parar de sonhar? Como vamos ficar?”

 “Ninguém vai ficar sem sonhar.  Por HOJE, o SEU sonho acabou.”

Acordo.  São oito e meia da manhã! Não tive insônia afinal e estou super atrasado! Dou-me conta de que o despertador do celular não tocou de novo.  O espelho me mostra que sou o mesmo de sempre. “Talvez alguns anos mais velho. Várias rugas, pernas que doem...”. O espelho me mostra que não sou o mesmo.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Epifania

Do jardim fértil, novas vidas eram geradas, vidas que brotavam para trazer novas vidas a rodeá-lo. No mesmo gramado, bebês engatinhavam onde mais tarde caminhariam de braços enlaçados, e então, trariam seus bebês para engatinhar, os mesmos que acompanhariam seus pais algum dia nos passeios matinais, num ciclo sem fim.

Helena não era parte de nenhuma daquelas histórias. Há 20 anos observava o jardim. Acompanhava  as histórias em pedaços contadas ali para depois embrenhar-se em cada uma delas, imaginando suas continuações. Contava e recontava para si mesma a vida daquelas pessoas, como se estivesse vivendo a sua própria. 
 
Única filha entre 4 irmãos, Helena cuidara da mãe durante aqueles 20 anos todos os dias, todas as horas e todos os minutos tirando os em que descia para o jardim. A doença a cada dia roubava um pouquinho da memória da mãe, de modo que pouco a pouco filha virava mãe que virava um corpo oco.  As duas cada dia mais ocas: a mãe que perdia a memória e a filha não construía nenhuma, solidária.  Sua função única era acompanhar a mãe desaparecer, cada dia mais, até virar um fantasma a vagar pela casa assombrada.  Assombrada um pouco por medo da morte, mas principalmente por medo da vida.  

Naquele domingo inédito, Helena não seria plateia no palco-jardim. Só precisava de um banco e uma árvore para esconder seu rosto na sombra.  A mulher chorava compulsivamente.   Revivia na memória a mesma cena diversas e diversas vezes: o corpo de sua mãe sendo sugado para dentro da terra em um jardim ao revés.

Iam embora com ela os dias de chuva que ensolaravam-se em segundos quando de repente a mãe contava, depois de dias e dias em silêncio, do vestido que Helena usara no primeiro dia de aula. Iam embora com ela as noites que varou, os gritos que abafou para não acordar os vizinhos, cada vitória sobre a doença e cada derrota.   Iam embora com ela suas histórias, seus sonhos, suas broncas, suas lágrimas.

Começou a sentir a saudade entalada em sua garganta subindo, virando angústia, pânico, falta de ar, e uma ânsia incontrolável a fez vomitar.  Ninguém teria visto a cena se não fosse por um homem que a observava de longe há alguns minutos.  João se levantou, andou ate ela e lhe ofereceu um lenço e um sorriso.

A história de João estava ligada a cada flor, borboleta e árvore do jardim. Conhecera a esposa na infância.  Brincaram ali, ele, Vera e os amigos, de pique-esconde.  Vera era a sempre a primeira a ser encontrada, mas João não a deixava perder.  Ficava no pique em seu lugar, de olhos fechados contando, enquanto as crianças se escondiam novamente.

Os dois começaram a namorar muito jovens, e ficaram noivos por longos anos até terem condição de se responsabilizarem por suas próprias vidas.  O casamento foi festejado no jardim, logo depois da cerimônia na igreja próxima.   Não demorou até nascerem os meninos, que cresceram saudáveis e felizes, tão rápido como João ou Vera jamais teriam previsto.

Nos últimos anos viviam juntos apenas os três na mesma casa de tantos anos.  João, Vera e o raro tipo de amor que os unia, lapidado a cada dia pela erosão do tempo.  Quando a escultura finalmente ficou pronta, o tempo julgou ser hora de levar um deles, e escolheu Vera.  Dali em diante, João parou de viver por meses, até aquele domingo.

O domingo em que ele e Helena se viram pela primeira, e pela última vez.  Conversaram por muitas horas até a noite cair.  E inspirados pela luz das estrelas vinda de longe para desenhar, no momento exato, um céu planejado há milhares de anos, convidaram-se para dançar.  E embora nenhum dos dois tivesse dançado antes em um jardim observados pelo céu estrelado, souberam exatamente o que fazer naquela noite.  E em todas as outras subsequentes.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Entre o Rio e o Mar


Nunca tinha visto o mar e agora voava plainando em sua direção como uma gaivota solitária no seu céu azul.  Da janela do avião, podia sentir a brisa no rosto, o sol aquecendo seu corpo, o universo a acolhê-la, a dar-lhe boas-vindas como um feto no útero da mãe. Naquele exato segundo era feliz sabendo disso.

Ana aguardava a cidade inquieta e ansiosa.  Para o Rio de Janeiro - sua cidade dos sonhos - iam juntos ela, o marido de algumas horas, as malas da vida inteira até então e os sonhos de toda a vida por vir.

A garota havia morado no município de Capixaba no Acre desde sempre. A família que era do Espirito Santo mudara para lá no final da década de 70 e tinha uma pequena fazenda.  Com muito esforço, conseguira terminar o segundo grau e aos 19 anos seus sonhos para o futuro deveriam se concentrar em trabalhar na fazenda da família, conhecer um rapaz correto, casar-se e ter filhos. 

Acontece que a moça não era quem deveria ser e constantemente se sentia inadequada.  Nessa terra onde as linhas de expressão tão cedo marcavam peles muito morenas queimadas pelo sol, os rostos formavam labirintos a levar todos eles para um mesmo lugar.  Um lugar onde Ana não estava e nem nunca estaria. 

No verão onde completou 20 anos, e como em todos os verões, Ana viajou para Rio Branco onde ficaria por um mês na casa da tia.  E foi em uma das festas de forró para onde ia com frequência na companhia da prima, que conheceu Mauro.  Um carioca de 30 anos que estava morando há alguns meses na cidade.  Mauro, que era advogado, tinha passado para um concurso publico recentemente e havia sido transferido para o Acre. 

O homem apesar de não ser bonito, era gentil e simpático e poderia ter se divertido com sua vida de solteiro por muito mais tempo naquela cidade onde não desejava permanecer.  Mas quis o destino ou a sorte que ele se apaixonasse por Ana.  E Ana por ele.  Não tardou para que os dois começassem a namorar e entre idas e vindas para as duas cidades, construíram quatro anos de uma historia feliz.  Quando soube que finalmente havia conseguido a transferência para o Rio de Janeiro, Mauro fez o pedido.

Foi naquele cair de tarde com o sol alaranjado rasgando o céu que a moça viu o mar pela primeira vez. As pernas bambearam um pouco e seus joelhos teimaram em tombar.  Saudavam a imensidão do mar. E embora estivesse acostumada a imensidão de rio, as duas paisagens eram tão diferentes quanto a personalidade dela quando comparada a de sua familia. Foi naquele cair de tarde que Ana teve a certeza: olhar para o mar era olhar para dentro de si mesma. Pela primeira vez soube quem era.

A vida no Rio era a das possibilidades, do céu perfeito, dos homens e das moças esculturais, do gingado de uma cidade dançante, das delícias da Lapa noturna, dos prédios altos no centro.  Sentia-se uma estrela da novela esperando a qualquer momento que coisas maravilhosas acontecessem. 

Mauro com os meses foi se mostrando um marido exemplar.  Carinhoso, atencioso e apaixonado, exatamente como deveria ser.  Seus olhos eram sempre para Ana a quem admirava a cada dia mais, um amor que crescia à medida que via a menina meio “bicho do mato” virar uma mulher decidida, forte e linda diante de seus olhos.  

Ana dividia seu tempo entre os estudos na faculdade de direito que Mauro concordara em pagar e passeios deslumbrados pelo Rio.  A cidade exercia sobre ela uma paixão viva exatamente igual ao primeiro dia em que a tinha visto.  E enquanto o amor de Ana pela cidade, seus vícios e prazeres crescia, o amor que sentia por Mauro murchava, como se tudo não tivesse passado de uma grande ilusão.  Uma miopia de sentidos.

Era como se os moveis e utensílios de uma casa fossem sendo retirados pouco a pouco: primeiro os utensílios menores, insignificantes, depois os móveis menores, os maiores e um dia, quando finalmente estivesse realmente enxergando, a casa oca  revelaria a ela verdade.  Uma verdade dolorosa, traiçoeira, na qual não quis acreditar a princípio.  Sentia-se ingrata, confusa, sem rumo.  E por mais que tentasse estancar a fuga daquilo que fosse que ainda a mantinha feliz ao lado do marido, nada funcionava.  Ao fim daquele primeiro ano de casamento, viver com Mauro tinha se tornado insustentável.

No dia em que seu corpo parou de lhe obedecer, suas pernas a levaram para o mar.  E o mar que lhe revelou quem era, lhe mostrou dessa vez o caminho a seguir.  Ao cair na água foi atropelada por um surfista.

Ana não pôde resistir e se entregou a conversa dele, aos beijos, ao corpo dele enroscando no seu, abraçando o homem como quem abraçava a paisagem, voando naquele céu de Copacabana, virando ar, sol alaranjado.  Ela se fundia nele como quem ajoelhava na areia e chorava vendo o mar pela primeira vez. Ele era a vida derretendo na pele que ardia.

Quando a tarde caiu, tão linda quanto na primeira vez, Ana recuperou o controle de seu corpo.   Se viu exausta, plena, múltipla e real. Fechava ela um ciclo. Como um rio que desemboca no mar.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Universos

Deitada no chão do quarto, Lúcia contava as estrelas do teto. Constelações, planetas, galáxias e sois a gravitar em torno dela. Seu universo. A madeira do chão encostava-se à pele ganhando o formato do corpo de Lúcia como um colchão velho, o corpo impregnado do perfume da madeira, pele e madeira formando uma coisa só. Lúcia plantada.

O chão onde deitava contava uns 80 anos de vida. Lúcia contava 25. O chão acompanhara da origem a história dela. Do berço às caixas e malas espalhadas pelo quarto. E embora Lúcia se achasse tão inédita no mundo, ele sabia que essa história sobre pais, filhos e chãos de quarto já havia sido contada tantas vezes. Já havia ele mesmo, visto outras Lúcias irem embora e a outras veria ainda. Uma vez que se encontrava em bom estado.

A moça há tempos se via aumentar de tamanho. Seu corpo, uma massa em expansão, já tinha quase o formato do quarto. Ia da porta à janela, da cama à televisão. Em algum momento suas raízes, nascendo tão fortes como nasciam, arrebentariam as paredes do quarto e a casa explodiria. Por isso então, resolveu buscar um apartamento para alugar antes que fosse tarde demais. 

Naquela época de espera, a vida tinha se tornado muito mais lenta e complicada. O tempo não lhe pertencia mais, nem a casa dos pais. Suas vontades eram múltiplas e contraditórias. Tudo estava fragmentado. Os pais de vez em quando se lembravam de alguma história da infância da filha única, histórias que só virariam memória graças à eles, pequena demais que era para se lembrar de qualquer coisa. Tinha também as memórias dela que apareciam sozinhas em cada canto da casa. Crescera em um lar feliz. Partir era perdê-lo. Ficar não era uma opção. Aquela época era a época do medo. 

As malas e caixas iam aos poucos acomodando a vida. Alguns bichos de pelúcia a acompanhariam na jornada, outros ficariam no quarto. As roupas iriam todas, os livros não agora. Aos poucos seriam levados, a cada visita aos pais. Ainda tinha as fotos, os bibelôs, os sapatos, os sonhos, as memórias. 

Aos poucos foi percebendo que não conseguia mais se mexer, que o chão de alguma forma tinha virado ela mesma. Não sabia se estava presa ou se prendia. As coisas ao seu redor aumentando de quantidade até sentir que ao seu lado estava uma montanha de objetos que jamais caberiam em numa caixa ou mala. E por isso não teve outra opção que não adiar a mudança. Sentiu-se aliviada. 

De repente, começou a ouvir muito distante, bem baixinho, o barulho do mar. A moça achou bem estranho já que morava perto da praia, mas não perto o suficiente para ouvir o oceano. O chiado foi aumentado de volume, aumentando de volume até ficar ao pé do ouvido, primeiro como se estivesse na praia, e depois como estar à deriva em alto mar. 

O barulho logo virou água, oceano a arrebentar a janela, estilhaçar o vidro no chão e aos poucos encher o quarto, sair pela porta, molhando a sala, o banheiro, o quarto dos pais. Enchendo, enchendo, até os peixes do aquário nadarem livres pela casa. O mar logo a desgrudou do chão desfez suas raízes e a carregou por ai. 

Lúcia por um momento até tentou debater-se contra as ondas, nadar, controlar o incontrolável, mas a fúria da água era tão grande, que tudo o que ela podia fazer era boiar e se deixar levar descendo as escadas do prédio, flutuando pela rua, pelas estrelas da noite de um universo que não mais gravitava em torno dela, mas que a tornava um ponto minúsculo num teto inacabável. 

Logo notou que agora, as estrelas de seu quarto tatuavam também o céu. Nesse momento, Lúcia era maior do que o seu quarto. O quarto cabia dentro dela. A Lúcia era um ponto e o universo. Vagou pela noite levada pelas aguas, guiada pelas estrelas como um barco em alto mar até ser deixada da mesma forma que tantas outras Lúcias tinham sido, dentro da nova casa com suas malas, caixas e memórias.

sábado, 23 de março de 2013

O amor, a tempestade e o vento

Cantando a cantiga mais antiga já ouvida, o vento chamava todos naquele inicio de noite. Queria aqueles do lado de dentro dançando do lado de fora, na chuva, livres da mesmice daquela prisão branca.

Um homem de 30 anos já menino há alguns meses reconheceu a música assim que a ouviu. Viu a si mesmo embalado no colo da avó comendo pipoca doce com leite condensado. Perdido, ora se inclinava da cadeira no ímpeto de voar da janela e se misturar ao vento. Ora tinha a certeza de que o prédio iria desabar a qualquer momento e pensava que talvez melhor fosse chamar a enfermeira o quanto antes.

Verdade que já tantas vezes imaginara o fim. O que aconteceria se uma onda gigante engolisse o hospital? Será que terminaria a vida estirado no chão sem poder correr? Alguns dias imaginava que se fosse capaz de se antecipar chamando logo a enfermeira seria salvo, e talvez, cadeira de rodas e a doença pudessem desaparecer do mesmo modo que tinha aparecido e ele se fazer homem novamente. Responsável por si, por sua vida.

No meio dessa tempestade já cansada de tanto ventar e chover, ela entrou no quarto trazida pela enfermeira. Linda e ainda jovem ela o via pela primeira vez depois de 12 anos. Sem rodeios, sem medo, o encarou por algum tempo.

A visita sustentou o olhar o quanto pôde ate desabar num choro profundo, doído, um choro de toda a chuva do lado de fora e mais uns tantos litros. Não escondeu o rosto, não pediu perdão ou disse “Vai ficar tudo bem”. Apenas puxou a cadeira sentando-se ao seu lado. Cadeira colada com cadeira colada como nos tempos da escola.

Por um momento, por uma questão de ritmo, ele tentou respirar junto com a respiração dela, buscando conduzi-la ao ritmo da cantiga, daquela cantiga do vento. Ela em silêncio por não conseguir dizer nada, ele em silêncio em respeito ao ritmo, os dois numa conversa de alma e de memórias.

Um dueto. Ele a lembrar dos cabelos rebeldes, das bolinhas de papel, dos papeis de carta. Ela a lembrar das mãos dadas, do segredo, do beijo escondido atrás da pilastra numa nostalgia asfixiante a embriagá-los. Ela com a vida pela frente, ele, da mesma idade, tão doente.

De repente, ela mudou o ritmo, e a respiração tornou-se ofegante, intensa, as lágrimas já tendo todas corrido o que tinham que correr. Inclinou-se em sua cadeira e lhe deu um beijo. O “beijo de adulto” que nunca haviam dado, o beijo que tinha se perdido na adolescência tendo os dois seguido rumos tão diferentes mesmo estando na mesma escola, na mesma turma.

Ele não a interrompeu. Saliva, língua, lábios... Esses lábios grossos dela. O beijo um tanto emocionado. A cabeça dele girando. E disse a moça olhando para além dele “Eu te amo”. Mesmo não amando, e sabendo que ele sabia disso. Mesmo sabendo que ele não a amava também e que claro não havia nada, história ou tempo para construí-la. Mas disse. Disse porque precisava dizer, porque a menina nela - aquela que de idade igualava com ele agora naquela cadeira de rodas dependendo de todas as coisas -exigia.

Disse porque as palavras estavam nela, voando dentro dela, prontas para serem ditas. Palavras que ela menina nunca conseguira dizer. Como se ela pudesse fazer o tempo torcer, um tempo circular, onde aquele amor de criança de 9 anos pudesse ser expresso da mesma forma e com a mesma intensidade que naquela época.

Aquilo tudo tão inesperado - mesmo para o vento e para a chuva acostumados com essas coisas – interrompeu a tempestade. Vento e chuva pararam e foram espiar do lado de fora o lado de dentro. Ele, tão exausto, tão consumido por si mesmo, por toda a energia que aquele corpo sem esperança demandava dele. Ela na expectativa do que ele poderia achar. Havia sido tão louca afinal.

E foi então que veio o choro dele. Aquele choro que tentara por tantas vezes ludibriar, guardado desde a época em que a doença fora diagnosticada. Um choro que veio de um lugar tão escuro e tão abandonado que não pôde identificar. Veio numa força e intensidade tal, que o desarmou. Raiva, desespero, vazio, a certeza do fim. E depois, a onda gigante. Logo depois. A onda que destruiria e libertaria ao mesmo tempo. A onda que era ela. A primeira e a última.

“Eu também”, respondeu e ficou a contemplá-la. Os dois com aquele amor resgatado, inventado sem saber o que fazer um do outro. Ela novamente tomou a iniciativa e o abraçou. Ele novamente, deixou-se abraçar. E ficaram ali, se amando por aqueles poucos segundos que tiveram ate o momento se desfazer ou então chegar a família dele para a visita.

O homem morreu uns dias depois do encontro, feliz, outro, em paz, cantarolando em voz alta a canção que ecoava ao vivo na sua memória - ela, ele e o vento - cantou até a voz acabar e permanecer em completo silêncio.