quarta-feira, 24 de abril de 2013

Entre o Rio e o Mar


Nunca tinha visto o mar e agora voava plainando em sua direção como uma gaivota solitária no seu céu azul.  Da janela do avião, podia sentir a brisa no rosto, o sol aquecendo seu corpo, o universo a acolhê-la, a dar-lhe boas-vindas como um feto no útero da mãe. Naquele exato segundo era feliz sabendo disso.

Ana aguardava a cidade inquieta e ansiosa.  Para o Rio de Janeiro - sua cidade dos sonhos - iam juntos ela, o marido de algumas horas, as malas da vida inteira até então e os sonhos de toda a vida por vir.

A garota havia morado no município de Capixaba no Acre desde sempre. A família que era do Espirito Santo mudara para lá no final da década de 70 e tinha uma pequena fazenda.  Com muito esforço, conseguira terminar o segundo grau e aos 19 anos seus sonhos para o futuro deveriam se concentrar em trabalhar na fazenda da família, conhecer um rapaz correto, casar-se e ter filhos. 

Acontece que a moça não era quem deveria ser e constantemente se sentia inadequada.  Nessa terra onde as linhas de expressão tão cedo marcavam peles muito morenas queimadas pelo sol, os rostos formavam labirintos a levar todos eles para um mesmo lugar.  Um lugar onde Ana não estava e nem nunca estaria. 

No verão onde completou 20 anos, e como em todos os verões, Ana viajou para Rio Branco onde ficaria por um mês na casa da tia.  E foi em uma das festas de forró para onde ia com frequência na companhia da prima, que conheceu Mauro.  Um carioca de 30 anos que estava morando há alguns meses na cidade.  Mauro, que era advogado, tinha passado para um concurso publico recentemente e havia sido transferido para o Acre. 

O homem apesar de não ser bonito, era gentil e simpático e poderia ter se divertido com sua vida de solteiro por muito mais tempo naquela cidade onde não desejava permanecer.  Mas quis o destino ou a sorte que ele se apaixonasse por Ana.  E Ana por ele.  Não tardou para que os dois começassem a namorar e entre idas e vindas para as duas cidades, construíram quatro anos de uma historia feliz.  Quando soube que finalmente havia conseguido a transferência para o Rio de Janeiro, Mauro fez o pedido.

Foi naquele cair de tarde com o sol alaranjado rasgando o céu que a moça viu o mar pela primeira vez. As pernas bambearam um pouco e seus joelhos teimaram em tombar.  Saudavam a imensidão do mar. E embora estivesse acostumada a imensidão de rio, as duas paisagens eram tão diferentes quanto a personalidade dela quando comparada a de sua familia. Foi naquele cair de tarde que Ana teve a certeza: olhar para o mar era olhar para dentro de si mesma. Pela primeira vez soube quem era.

A vida no Rio era a das possibilidades, do céu perfeito, dos homens e das moças esculturais, do gingado de uma cidade dançante, das delícias da Lapa noturna, dos prédios altos no centro.  Sentia-se uma estrela da novela esperando a qualquer momento que coisas maravilhosas acontecessem. 

Mauro com os meses foi se mostrando um marido exemplar.  Carinhoso, atencioso e apaixonado, exatamente como deveria ser.  Seus olhos eram sempre para Ana a quem admirava a cada dia mais, um amor que crescia à medida que via a menina meio “bicho do mato” virar uma mulher decidida, forte e linda diante de seus olhos.  

Ana dividia seu tempo entre os estudos na faculdade de direito que Mauro concordara em pagar e passeios deslumbrados pelo Rio.  A cidade exercia sobre ela uma paixão viva exatamente igual ao primeiro dia em que a tinha visto.  E enquanto o amor de Ana pela cidade, seus vícios e prazeres crescia, o amor que sentia por Mauro murchava, como se tudo não tivesse passado de uma grande ilusão.  Uma miopia de sentidos.

Era como se os moveis e utensílios de uma casa fossem sendo retirados pouco a pouco: primeiro os utensílios menores, insignificantes, depois os móveis menores, os maiores e um dia, quando finalmente estivesse realmente enxergando, a casa oca  revelaria a ela verdade.  Uma verdade dolorosa, traiçoeira, na qual não quis acreditar a princípio.  Sentia-se ingrata, confusa, sem rumo.  E por mais que tentasse estancar a fuga daquilo que fosse que ainda a mantinha feliz ao lado do marido, nada funcionava.  Ao fim daquele primeiro ano de casamento, viver com Mauro tinha se tornado insustentável.

No dia em que seu corpo parou de lhe obedecer, suas pernas a levaram para o mar.  E o mar que lhe revelou quem era, lhe mostrou dessa vez o caminho a seguir.  Ao cair na água foi atropelada por um surfista.

Ana não pôde resistir e se entregou a conversa dele, aos beijos, ao corpo dele enroscando no seu, abraçando o homem como quem abraçava a paisagem, voando naquele céu de Copacabana, virando ar, sol alaranjado.  Ela se fundia nele como quem ajoelhava na areia e chorava vendo o mar pela primeira vez. Ele era a vida derretendo na pele que ardia.

Quando a tarde caiu, tão linda quanto na primeira vez, Ana recuperou o controle de seu corpo.   Se viu exausta, plena, múltipla e real. Fechava ela um ciclo. Como um rio que desemboca no mar.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Universos

Deitada no chão do quarto, Lúcia contava as estrelas do teto. Constelações, planetas, galáxias e sois a gravitar em torno dela. Seu universo. A madeira do chão encostava-se à pele ganhando o formato do corpo de Lúcia como um colchão velho, o corpo impregnado do perfume da madeira, pele e madeira formando uma coisa só. Lúcia plantada.

O chão onde deitava contava uns 80 anos de vida. Lúcia contava 25. O chão acompanhara da origem a história dela. Do berço às caixas e malas espalhadas pelo quarto. E embora Lúcia se achasse tão inédita no mundo, ele sabia que essa história sobre pais, filhos e chãos de quarto já havia sido contada tantas vezes. Já havia ele mesmo, visto outras Lúcias irem embora e a outras veria ainda. Uma vez que se encontrava em bom estado.

A moça há tempos se via aumentar de tamanho. Seu corpo, uma massa em expansão, já tinha quase o formato do quarto. Ia da porta à janela, da cama à televisão. Em algum momento suas raízes, nascendo tão fortes como nasciam, arrebentariam as paredes do quarto e a casa explodiria. Por isso então, resolveu buscar um apartamento para alugar antes que fosse tarde demais. 

Naquela época de espera, a vida tinha se tornado muito mais lenta e complicada. O tempo não lhe pertencia mais, nem a casa dos pais. Suas vontades eram múltiplas e contraditórias. Tudo estava fragmentado. Os pais de vez em quando se lembravam de alguma história da infância da filha única, histórias que só virariam memória graças à eles, pequena demais que era para se lembrar de qualquer coisa. Tinha também as memórias dela que apareciam sozinhas em cada canto da casa. Crescera em um lar feliz. Partir era perdê-lo. Ficar não era uma opção. Aquela época era a época do medo. 

As malas e caixas iam aos poucos acomodando a vida. Alguns bichos de pelúcia a acompanhariam na jornada, outros ficariam no quarto. As roupas iriam todas, os livros não agora. Aos poucos seriam levados, a cada visita aos pais. Ainda tinha as fotos, os bibelôs, os sapatos, os sonhos, as memórias. 

Aos poucos foi percebendo que não conseguia mais se mexer, que o chão de alguma forma tinha virado ela mesma. Não sabia se estava presa ou se prendia. As coisas ao seu redor aumentando de quantidade até sentir que ao seu lado estava uma montanha de objetos que jamais caberiam em numa caixa ou mala. E por isso não teve outra opção que não adiar a mudança. Sentiu-se aliviada. 

De repente, começou a ouvir muito distante, bem baixinho, o barulho do mar. A moça achou bem estranho já que morava perto da praia, mas não perto o suficiente para ouvir o oceano. O chiado foi aumentado de volume, aumentando de volume até ficar ao pé do ouvido, primeiro como se estivesse na praia, e depois como estar à deriva em alto mar. 

O barulho logo virou água, oceano a arrebentar a janela, estilhaçar o vidro no chão e aos poucos encher o quarto, sair pela porta, molhando a sala, o banheiro, o quarto dos pais. Enchendo, enchendo, até os peixes do aquário nadarem livres pela casa. O mar logo a desgrudou do chão desfez suas raízes e a carregou por ai. 

Lúcia por um momento até tentou debater-se contra as ondas, nadar, controlar o incontrolável, mas a fúria da água era tão grande, que tudo o que ela podia fazer era boiar e se deixar levar descendo as escadas do prédio, flutuando pela rua, pelas estrelas da noite de um universo que não mais gravitava em torno dela, mas que a tornava um ponto minúsculo num teto inacabável. 

Logo notou que agora, as estrelas de seu quarto tatuavam também o céu. Nesse momento, Lúcia era maior do que o seu quarto. O quarto cabia dentro dela. A Lúcia era um ponto e o universo. Vagou pela noite levada pelas aguas, guiada pelas estrelas como um barco em alto mar até ser deixada da mesma forma que tantas outras Lúcias tinham sido, dentro da nova casa com suas malas, caixas e memórias.