quinta-feira, 11 de abril de 2013

Universos

Deitada no chão do quarto, Lúcia contava as estrelas do teto. Constelações, planetas, galáxias e sois a gravitar em torno dela. Seu universo. A madeira do chão encostava-se à pele ganhando o formato do corpo de Lúcia como um colchão velho, o corpo impregnado do perfume da madeira, pele e madeira formando uma coisa só. Lúcia plantada.

O chão onde deitava contava uns 80 anos de vida. Lúcia contava 25. O chão acompanhara da origem a história dela. Do berço às caixas e malas espalhadas pelo quarto. E embora Lúcia se achasse tão inédita no mundo, ele sabia que essa história sobre pais, filhos e chãos de quarto já havia sido contada tantas vezes. Já havia ele mesmo, visto outras Lúcias irem embora e a outras veria ainda. Uma vez que se encontrava em bom estado.

A moça há tempos se via aumentar de tamanho. Seu corpo, uma massa em expansão, já tinha quase o formato do quarto. Ia da porta à janela, da cama à televisão. Em algum momento suas raízes, nascendo tão fortes como nasciam, arrebentariam as paredes do quarto e a casa explodiria. Por isso então, resolveu buscar um apartamento para alugar antes que fosse tarde demais. 

Naquela época de espera, a vida tinha se tornado muito mais lenta e complicada. O tempo não lhe pertencia mais, nem a casa dos pais. Suas vontades eram múltiplas e contraditórias. Tudo estava fragmentado. Os pais de vez em quando se lembravam de alguma história da infância da filha única, histórias que só virariam memória graças à eles, pequena demais que era para se lembrar de qualquer coisa. Tinha também as memórias dela que apareciam sozinhas em cada canto da casa. Crescera em um lar feliz. Partir era perdê-lo. Ficar não era uma opção. Aquela época era a época do medo. 

As malas e caixas iam aos poucos acomodando a vida. Alguns bichos de pelúcia a acompanhariam na jornada, outros ficariam no quarto. As roupas iriam todas, os livros não agora. Aos poucos seriam levados, a cada visita aos pais. Ainda tinha as fotos, os bibelôs, os sapatos, os sonhos, as memórias. 

Aos poucos foi percebendo que não conseguia mais se mexer, que o chão de alguma forma tinha virado ela mesma. Não sabia se estava presa ou se prendia. As coisas ao seu redor aumentando de quantidade até sentir que ao seu lado estava uma montanha de objetos que jamais caberiam em numa caixa ou mala. E por isso não teve outra opção que não adiar a mudança. Sentiu-se aliviada. 

De repente, começou a ouvir muito distante, bem baixinho, o barulho do mar. A moça achou bem estranho já que morava perto da praia, mas não perto o suficiente para ouvir o oceano. O chiado foi aumentado de volume, aumentando de volume até ficar ao pé do ouvido, primeiro como se estivesse na praia, e depois como estar à deriva em alto mar. 

O barulho logo virou água, oceano a arrebentar a janela, estilhaçar o vidro no chão e aos poucos encher o quarto, sair pela porta, molhando a sala, o banheiro, o quarto dos pais. Enchendo, enchendo, até os peixes do aquário nadarem livres pela casa. O mar logo a desgrudou do chão desfez suas raízes e a carregou por ai. 

Lúcia por um momento até tentou debater-se contra as ondas, nadar, controlar o incontrolável, mas a fúria da água era tão grande, que tudo o que ela podia fazer era boiar e se deixar levar descendo as escadas do prédio, flutuando pela rua, pelas estrelas da noite de um universo que não mais gravitava em torno dela, mas que a tornava um ponto minúsculo num teto inacabável. 

Logo notou que agora, as estrelas de seu quarto tatuavam também o céu. Nesse momento, Lúcia era maior do que o seu quarto. O quarto cabia dentro dela. A Lúcia era um ponto e o universo. Vagou pela noite levada pelas aguas, guiada pelas estrelas como um barco em alto mar até ser deixada da mesma forma que tantas outras Lúcias tinham sido, dentro da nova casa com suas malas, caixas e memórias.

Um comentário:

  1. Adorei o conto! Gostei muito da metáfora da vida invadindo o "casulo" dela. Processo de amadurecimento do ser humano.

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