terça-feira, 14 de maio de 2013

Epifania

Do jardim fértil, novas vidas eram geradas, vidas que brotavam para trazer novas vidas a rodeá-lo. No mesmo gramado, bebês engatinhavam onde mais tarde caminhariam de braços enlaçados, e então, trariam seus bebês para engatinhar, os mesmos que acompanhariam seus pais algum dia nos passeios matinais, num ciclo sem fim.

Helena não era parte de nenhuma daquelas histórias. Há 20 anos observava o jardim. Acompanhava  as histórias em pedaços contadas ali para depois embrenhar-se em cada uma delas, imaginando suas continuações. Contava e recontava para si mesma a vida daquelas pessoas, como se estivesse vivendo a sua própria. 
 
Única filha entre 4 irmãos, Helena cuidara da mãe durante aqueles 20 anos todos os dias, todas as horas e todos os minutos tirando os em que descia para o jardim. A doença a cada dia roubava um pouquinho da memória da mãe, de modo que pouco a pouco filha virava mãe que virava um corpo oco.  As duas cada dia mais ocas: a mãe que perdia a memória e a filha não construía nenhuma, solidária.  Sua função única era acompanhar a mãe desaparecer, cada dia mais, até virar um fantasma a vagar pela casa assombrada.  Assombrada um pouco por medo da morte, mas principalmente por medo da vida.  

Naquele domingo inédito, Helena não seria plateia no palco-jardim. Só precisava de um banco e uma árvore para esconder seu rosto na sombra.  A mulher chorava compulsivamente.   Revivia na memória a mesma cena diversas e diversas vezes: o corpo de sua mãe sendo sugado para dentro da terra em um jardim ao revés.

Iam embora com ela os dias de chuva que ensolaravam-se em segundos quando de repente a mãe contava, depois de dias e dias em silêncio, do vestido que Helena usara no primeiro dia de aula. Iam embora com ela as noites que varou, os gritos que abafou para não acordar os vizinhos, cada vitória sobre a doença e cada derrota.   Iam embora com ela suas histórias, seus sonhos, suas broncas, suas lágrimas.

Começou a sentir a saudade entalada em sua garganta subindo, virando angústia, pânico, falta de ar, e uma ânsia incontrolável a fez vomitar.  Ninguém teria visto a cena se não fosse por um homem que a observava de longe há alguns minutos.  João se levantou, andou ate ela e lhe ofereceu um lenço e um sorriso.

A história de João estava ligada a cada flor, borboleta e árvore do jardim. Conhecera a esposa na infância.  Brincaram ali, ele, Vera e os amigos, de pique-esconde.  Vera era a sempre a primeira a ser encontrada, mas João não a deixava perder.  Ficava no pique em seu lugar, de olhos fechados contando, enquanto as crianças se escondiam novamente.

Os dois começaram a namorar muito jovens, e ficaram noivos por longos anos até terem condição de se responsabilizarem por suas próprias vidas.  O casamento foi festejado no jardim, logo depois da cerimônia na igreja próxima.   Não demorou até nascerem os meninos, que cresceram saudáveis e felizes, tão rápido como João ou Vera jamais teriam previsto.

Nos últimos anos viviam juntos apenas os três na mesma casa de tantos anos.  João, Vera e o raro tipo de amor que os unia, lapidado a cada dia pela erosão do tempo.  Quando a escultura finalmente ficou pronta, o tempo julgou ser hora de levar um deles, e escolheu Vera.  Dali em diante, João parou de viver por meses, até aquele domingo.

O domingo em que ele e Helena se viram pela primeira, e pela última vez.  Conversaram por muitas horas até a noite cair.  E inspirados pela luz das estrelas vinda de longe para desenhar, no momento exato, um céu planejado há milhares de anos, convidaram-se para dançar.  E embora nenhum dos dois tivesse dançado antes em um jardim observados pelo céu estrelado, souberam exatamente o que fazer naquela noite.  E em todas as outras subsequentes.