sexta-feira, 21 de junho de 2013

A volta

“Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu”
TODO O SENTIMENTO – Chico Buarque


“É na soma do seu olhar
Que eu vou me conhecer inteiro
Se eu nasci para enfrentar o mar
Ou faroleiro”
TANTO AMAR – Chico Buarque

Eram três. Os dois mais a roda. A roda gigante girava imponente em seu eixo. Sabia seu rumo, seu destino. Os outros dois, não. João e Sônia entraram na cabine. A partir daquele momento, não tinham mais passado comum. O presente e o futuro seriam desenhados juntos e durariam o tempo da volta da roda.

João saboreou o silêncio tão bem vindo depois de tanto tempo. Sônia pulou na paisagem. João tragou o silêncio, e o misturou no fundo de si, deixou-o ali, ludibriado, como se ele silêncio nunca tivesse deixado de fazer parte dele João. Sônia voava naquele céu azul, era pássaro, era nuvem, era sol. Sônia era paisagem.

Sônia-paisagem de longe observava João, um feixe de luz que aumentava cada vez mais de tamanho e intensidade, até cobrir todo o espaço ao seu redor. Exatamente como João sempre fazia. João-silêncio olhava para dentro da Sônia habitante de sua memória, sua Sônia, de quem amava as sardas e vendavais. Sônia se aproximou da roda num voo rasante e pegou pedaço desse tecido para plantar João em si. João puxou Sônia-vento para dançar.

Enquanto a roda subia mais e mais, Sônia-paisagem voava fértil e João-silêncio via o amor que teciam povoar o espaço já todo tomado pelo silêncio. Dentro dela, crescia um farol. Dentro dele, amor e silêncio dançavam.

A roda já ia quase atingindo o topo quando Sônia-paisagem virou Sônia, e João-silêncio era João. Olharam-se e souberam-se encantados, hipnotizados pela beleza do redondo, dentro do redondo, do redondo, do redondo. E agora estavam no topo da roda, no topo céu, do mundo, do universo, circulares. Tão pequenos e tão únicos naquele segundo perfeito. Aquele era o momento de tudo convergir para que tudo desse certo. E movidos por uma certeza-fábula, fizeram o que acreditavam que deveriam e aguardaram.

O sol e a roda agora lentamente começavam a cair. Uma névoa aos poucos descia do céu e inexorável perfurava Sônia e João em seus caminhos. Arriscaram um beijo antes que fosse tarde demais, e embora até tenham tentado permanecer Sônia e João pelo tempo em que o beijo durou, não conseguiram. E de volta a paisagem, agora já escura e fragmentada, a moça não era mais capaz de ver João. João e seu silêncio haviam perdido Sônia no labirinto de si.

A gravidade puxava a roda que por sua vez puxava as lágrimas sincronizadas que não paravam de correr nos olhos que se viam sem se ver. As palavras não eram permitidas depois de tanto estrago, e nem seriam perfeitas o suficiente para comunicar e participar daquela conversa de ombros. Ombros que naturalmente convidaram braços e peitos para um abraço. Ao casal, só restava ir embora da roda que já tinha parado há algum tempo de girar aguardando que os dois saíssem e dessem lugar a novos outros casais a se aventurarem em seu giro. E então, saíram João e Sônia de mãos dadas, sem nada mais a fazer a não ser partirem, cada par de mãos para seu lado.

João e Sônia.
João, Sônia.
João. Sônia.
Vento e Farol.
Vento-Farol
VentoFarol

Regeriam silêncios e tempestades para sempre.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Perecível

Acordo assustado me sentindo estranho.  Percebo em desespero que meu corpo mudou de estado.  Sou líquido.  Ameaço escorrer, penetrar na cama e quase me desperdiço, mas por algum milagre consigo me conter entre as dobras do lençol e sua a trama, menos espessa que eu mesmo agora.  Preciso de ajuda. Minha esposa Marta dorme como sempre, sólida em seu sono pesado. Penso em acordá-la, em pedir-lhe que me coloque em um saco plástico, em um pote, balde, qualquer coisa, mas me faltam braços, ou qualquer membro para tocá-la. 

Minha gata Shakira então resolve pular na cama e dá um longo gole no meu corpo sem que eu consiga fazer qualquer coisa.  O que resta de mim lembra-se da voz, da voz que talvez exista ainda mesmo neste estado.  E grito.  Acordo com Marta me consolando “Foi só um pesadelo, calma, calma” mas sua voz vem de lugar nenhum.   Marta não esta ali.  Agora pelo menos estou em estado sólido e corro pela casa procurando pela voz que eu acabei de ouvir.  A voz ainda ecoa na casa, mas eu não a encontro. Marta sumiu e Shakira também. 

Percebo que não tenho braços, lembro-me do gole da gata e desço as escadas correndo esbaforido.  Quase esbarro no porteiro e pergunto somente por Marta.  

“Seu Mário, o senhor é solteiro...” - responde espantado.

“Não entendo...  E onde estão meus braços, o senhor os viu?”.

O homem responde que acha que sim:  “Veja se não são braços nesse pacote que foi entregue ontem de manhã. Provavelmente alguma compra que o senhor fez pela internet”.

Peço ajuda para o porteiro, que encaixa rapidamente os novos braços.  E me diz: “Vou precisar amputar suas pernas, tudo bem? Estou precisando delas”.

“Não, não. O senhor não pode fazer isso.... Eu preciso muito mais delas que você.  Cadê as suas por sinal?”

“Dá as pernas para o homem” responde Marta com um serrote já iniciando o procedimento de retirada da primeira. 

“Não! Não! Para, para, devolve minha perna... Me deixa em paz!”.  Começo a espancá-la até minha raiva passar.

Logo lembro que Marta não existe e o porteiro me diz:
“ Ei! Fui eu que disse isso! Eu mudei de voz, de cara, de corpo, só pela delicia de te ver louco.  Você ta acordado?”

Marta me sacode: “Querido você estava falando sozinho. O que aconteceu?”. 

“Foi só um sonho, respondo”. 

“Amor, cadê suas pernas?” - Marta grita.

“Eu não sei! Cadê minhas pernas?” E começo a chorar compulsivamente em completo desespero. “Eu achei que era um sonho...”

“Calma, não é para tanto também.  Vou pegar aquelas antigas da Tia Rose mesmo.   Ela não ta usando, mas depois vamos naquela loja de promoções comprar uma nova, ta bom? Amanha de manha, que tal? Acho que talvez seja bem o tempo de mudar mesmo para uma versão mais atualizada.”

Concordo com tudo aquilo com a cabeça somente, enquanto ela encaixa em mim as pernas da Tia Rose que são bem mais roliças que as minhas. Fica um pouco estranho, mas eu acabo achando melhor do que não ter qualquer perna. 

Sem conseguir dormir o resto da noite, resolvo vagar pela cidade.  Na frente do meu prédio sou atacado por lobos.  Eles deixam meu corpo intacto mas dilaceram e estraçalham minha cabeça.  Com ajuda dos vizinhos consigo matar todos.  Encaixo em mim a cabeça de um dos lobos.

Ao andar pelas ruas na madrugada, vejo as mesmas figuras de sempre.  Mendigos, prostitutas, a juventude voltando da noitada e observo em seus olhos que eu não sou mais eu. Ou ainda sou? Na verdade, ninguém parece se importar muito com isso.  As pessoas continuam em seu ritmo, cuidado de sua vida. Estranhamente, uma versão camuflada de mim que é incapaz de chocar aos outros com minha aparência bizarra me soa inútil.  Me sinto frágil, desamparado, perecível. 

Sinto um vazio e uma fome incontrolável toma conta de mim.  Ando até uma padaria sendo construída naquela noite e ainda inacabada.  O padeiro, um homem estranho, de cabelos levemente alaranjados e roupa branca me diz:

“O sonho acabou.”

“O doce? Ou o sonho, de sonhar?

“O outro.  O doce ainda tem.  Vai querer quantos?”

“Dois”. – Respondo. “E o outro sonho, ta em falta? A humanidade vai parar de sonhar? Como vamos ficar?”

 “Ninguém vai ficar sem sonhar.  Por HOJE, o SEU sonho acabou.”

Acordo.  São oito e meia da manhã! Não tive insônia afinal e estou super atrasado! Dou-me conta de que o despertador do celular não tocou de novo.  O espelho me mostra que sou o mesmo de sempre. “Talvez alguns anos mais velho. Várias rugas, pernas que doem...”. O espelho me mostra que não sou o mesmo.