Nunca tinha visto o mar
e agora voava plainando em sua direção como uma gaivota solitária no seu céu
azul. Da janela do avião, podia sentir a
brisa no rosto, o sol aquecendo seu corpo, o universo a acolhê-la, a dar-lhe
boas-vindas como um feto no útero da mãe. Naquele exato segundo era feliz
sabendo disso.
Ana aguardava a cidade inquieta
e ansiosa. Para o Rio de Janeiro - sua
cidade dos sonhos - iam juntos ela, o marido de algumas horas, as malas da vida
inteira até então e os sonhos de toda a vida por vir.
A garota havia morado no
município de Capixaba no Acre desde sempre. A família que era do Espirito Santo
mudara para lá no final da década de 70 e tinha uma pequena fazenda. Com muito esforço, conseguira terminar o
segundo grau e aos 19 anos seus sonhos para o futuro deveriam se concentrar em
trabalhar na fazenda da família, conhecer um rapaz correto, casar-se e ter
filhos.
Acontece que a moça não
era quem deveria ser e constantemente se sentia inadequada. Nessa terra onde as linhas de expressão tão
cedo marcavam peles muito morenas queimadas pelo sol, os rostos formavam
labirintos a levar todos eles para um mesmo lugar. Um lugar onde Ana não estava e nem nunca
estaria.
No verão onde completou
20 anos, e como em todos os verões, Ana viajou para Rio Branco onde ficaria por
um mês na casa da tia. E foi em uma das
festas de forró para onde ia com frequência na companhia da prima, que conheceu
Mauro. Um carioca de 30 anos que estava
morando há alguns meses na cidade. Mauro,
que era advogado, tinha passado para um concurso publico recentemente e havia
sido transferido para o Acre.
O homem apesar de não
ser bonito, era gentil e simpático e poderia ter se divertido com sua vida de
solteiro por muito mais tempo naquela cidade onde não desejava permanecer. Mas quis o destino ou a sorte que ele se
apaixonasse por Ana. E Ana por ele. Não tardou para que os dois começassem a
namorar e entre idas e vindas para as duas cidades, construíram quatro anos de
uma historia feliz. Quando soube que
finalmente havia conseguido a transferência para o Rio de Janeiro, Mauro fez o
pedido.
Foi naquele cair de
tarde com o sol alaranjado rasgando o céu que a moça viu o mar pela primeira
vez. As pernas bambearam um pouco e seus joelhos teimaram em tombar. Saudavam a imensidão do mar. E embora
estivesse acostumada a imensidão de rio, as duas paisagens eram tão diferentes
quanto a personalidade dela quando comparada a de sua familia. Foi naquele cair
de tarde que Ana teve a certeza: olhar para o mar era olhar para dentro de si
mesma. Pela primeira vez soube quem era.
A vida no Rio era a das
possibilidades, do céu perfeito, dos homens e das moças esculturais, do gingado
de uma cidade dançante, das delícias da Lapa noturna, dos prédios altos no
centro. Sentia-se uma estrela da novela
esperando a qualquer momento que coisas maravilhosas acontecessem.
Mauro com os meses foi
se mostrando um marido exemplar. Carinhoso,
atencioso e apaixonado, exatamente como deveria ser. Seus olhos eram sempre para Ana a quem
admirava a cada dia mais, um amor que crescia à medida que via a menina meio “bicho
do mato” virar uma mulher decidida, forte e linda diante de seus olhos.
Ana dividia seu tempo
entre os estudos na faculdade de direito que Mauro concordara em pagar e passeios
deslumbrados pelo Rio. A cidade exercia
sobre ela uma paixão viva exatamente igual ao primeiro dia em que a tinha visto. E enquanto o amor de Ana pela cidade, seus
vícios e prazeres crescia, o amor que sentia por Mauro murchava, como se tudo
não tivesse passado de uma grande ilusão.
Uma miopia de sentidos.
Era como se os moveis e
utensílios de uma casa fossem sendo retirados pouco a pouco: primeiro os
utensílios menores, insignificantes, depois os móveis menores, os maiores e um
dia, quando finalmente estivesse realmente enxergando, a casa oca revelaria a ela verdade. Uma verdade dolorosa, traiçoeira, na qual não
quis acreditar a princípio. Sentia-se
ingrata, confusa, sem rumo. E por mais
que tentasse estancar a fuga daquilo que fosse que ainda a mantinha feliz ao
lado do marido, nada funcionava. Ao fim
daquele primeiro ano de casamento, viver com Mauro tinha se tornado
insustentável.
No dia em que seu corpo
parou de lhe obedecer, suas pernas a levaram para o mar. E o mar que lhe revelou quem era, lhe mostrou dessa
vez o caminho a seguir. Ao cair na água foi
atropelada por um surfista.
Ana não pôde resistir e
se entregou a conversa dele, aos beijos, ao corpo dele enroscando no seu,
abraçando o homem como quem abraçava a paisagem, voando naquele céu de
Copacabana, virando ar, sol alaranjado.
Ela se fundia nele como quem ajoelhava na areia e chorava vendo o mar
pela primeira vez. Ele era a vida derretendo na pele que ardia.
Quando a tarde caiu, tão
linda quanto na primeira vez, Ana recuperou o controle de seu corpo. Se viu
exausta, plena, múltipla e real. Fechava ela um ciclo. Como um rio que
desemboca no mar.
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