quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A casa, o porta-retratos e o oceano

Quando Amanda entrou pela porta da antiga casa 20 anos depois, o mar entrou junto assim que as gêmeas se viram.  Invadiu sala, quarto, cozinha e em pouco tempo a casa flutuava.  A mãe primeiramente tentou tirar a agua com uns baldes e depois, conversar com Amanda e Lúcia para que parassem com o que quer que fosse que faziam. Mas não conseguiu. Ou não tentou o suficiente, uma vez que o mar não era oceano ainda. Que a bicicleta não estava tão quebrada assim, que o arranhão estava sangrando só um pouquinho.

A primeira vez que Lúcia matou tinha 7 anos.  Era um pé de feijão gigante que ela mesma plantou, regou e embalou.  “Pra que deixar isso aqui? A pesquisa da escola não acabou? Joga isso fora menina!” a mãe disse. Na segunda, tinha 16. “Eu sei que você quer. Mas não temos idade ainda. Agora não.” O namorado disse.  E ai foram ela, Amanda e a mãe do namorado na clínica resolver o problema. Não houve uma terceira vez. Aquilo surgiu alguns meses depois.  Primeiro, como uma coceira no nariz de Lúcia. Depois, escapando pelos olhos, como no dia em que Amanda e Eduardo, seu namorado num dia, e ex-namorado no outro, vieram lhe contar que estavam apaixonados.  Isso foi o que contaram com a boca. Contaram ainda em pensamento da pena que sentiam dela, coitadinha da gêmea feia. Pessoas bonitas deviam ficar juntas não havia jeito, enfim.

Depois veio o casamento de Amanda e Eduardo, algum tempo depois. Eles eram jovens, bonitos, se amavam e Lúcia os odiava.  Preferiu não ir ao casamento.  Nesta época a coceira no nariz que escapava pelos olhos já era um lago.  A irmã foi morar com o marido em outra cidade, para onde Eduardo foi transferido quando se formou.

Por isso quando Amanda abriu a porta e o lago era mar, Lúcia se assustou. Não sabia que ele tinha crescido assim. Havia se passado 20 anos, mas era como se tivesse sido ontem que ela saiu pela porta para nunca mais voltar.  E não teria voltado mesmo, se Eduardo não tivesse pedido o divórcio e se casado com outra mulher, bem mais jovem, que logo engravidou do filho que ele implorou para Amanda, mas ela nunca quis ter.

Amanda ainda era tão bonita. E talvez quisesse ter resistido ao mar. Talvez tivesse dito outra coisa naquele dia em que conversaram pela ultima vez, naquele dia em que ela roubou Eduardo. Mas não havia registro na memória de Lúcia. Nem som de voz para fazer as palavras serem compreendidas embaixo d’agua quando Amanda tentava – e ela tentava - se fazer compreender. Lúcia bem que quis sentir pena, ou qualquer coisa. Mas Amanda era uma vaca, uma vadia, como se diz na televisão.

Na vida de Lúcia nada mudou. Na de Amanda novos namorados vieram e se foram depois de Eduardo. Amanda começou e terminou uma faculdade e depois conseguiu bons trabalhos, conheceu pessoas, e por diversas vezes ameaçou ir embora da casa, tão cansada desse silêncio de uma casa que existe dentro do oceano. Mas nunca foi.

Mãe e gêmeas ainda conviveram juntas por 10 anos. O tempo necessário para a mãe ver o mar virar oceano. No dia do enterro da mãe, Lúcia tirou uma foto dela no caixão. Uma foto da face pálida e sem vida dela. Capturar sua morte era como mantê-la viva. Lúcia sabia disso. Amanda não. A foto ficou na sala da casa ainda por mais 10 anos.  Amanda tinha medo da foto. Como ter medo de alguém que as gerou? A mãe do porta-retratos era a mãe que Lúcia sempre quis ter.

E então, justo na manhã em que as duas completam 62 anos de vida, e a mãe 10 anos de morta, ele cai no chão. Justo na manhã que era para ser a mesma manhã de todos os dias, o porta-retratos se racha sem barulho em uma queda no fundo do oceano. Numa queda que nunca poderia ter rachado um porta-retratos, e mais ainda, uma foto.  Mas Lúcia agora é órfã.  É preciso encarar a verdade.  É órfã do pai que morreu quando ela muito pequena, e da mãe por causa de uma queda de porta-retratos.
 
Amanda flutua em sua direção. Nada viu. Não sabia que a mãe ainda cuidava de Lúcia, e se soubesse poderia sentir ciúmes.  Na verdade, Amanda não precisava mais da mãe. Da mesma forma que Lúcia não precisa mais do oceano.  Não há mais espaço na casa para ele crescer. O oceano vai explodir. Vai explodir e Lúcia grita. Amanda vê o grito sem som e segura na mão de Lúcia.  O oceano escorre pelos olhos de Lúcia com uma força que não dá para controlar.  Escorre por algumas horas até a casa ficar completamente seca como esta agora.  

As irmãs percebem o som voltar a casa.  Depois de tanto tempo, escutam o barulho dos ossos estalando no abraço que nunca mais tinham dado.  Amanda escuta a voz de Lúcia ecoando primeiro baixinho em um sussurro até aumentar de volume e virar um grito. Dessa vez o grito  podia ser ouvido até da rua. Muitos outros gritos.  Ouvir Lúcia é como ouvir outra pessoa.  Amanda tem sua última e primeira chance de falar com essa estranha. De dizer pra ela que sente muito. Que sente tanto. Tem a chance de falar para ela dos filhos que não pôde ter pela saudade de um sobrinho que nunca conheceu.  

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